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No início dos anos de 1970, Diana Agrest e Mário Gandelsonas chamaram a atenção para o facto de, considerando os anteriores vinte anos, genericamente as teorias de arquitectura terem sido orientadas no sentido de assegurarem uma perpetuação das estruturas da sociedade Ocidental.

Claro que sim.

Suponho que esta característica poderia, por um lado, recuar muito mais no tempo, e aí ser muito mais larga e abrangente, e, por outro, considerando já períodos mais próximos do nosso, poderia até ser muito mais precisa e detalhada.

É que parece evidente que esta característica se acentuou e tem concretizado desde a segunda metade do século passado.

Ainda que não alardeando esse espírito marcadamente ocidental e tendencialmente colonizador, as teorias hoje parecem mais empenhadas no sentido de uma validação de liderança dentro do próprio grupo dos países ocidentais, fazendo vingar esquemas de vida, mentalidade e valores que apenas podem ser característicos de algumas sociedades, mas estão longe de responder à maioria.

 

[…]

 

Direi que a atitude que aqui assumimos, e que não cremos generalizada, é que a Teoria de Arquitectura corresponde a uma elaboração independente, autónoma, não normativa, que tenta compreender a Arquitectura enquanto actividade humana de expressão própria, nas suas várias incidências e vertentes, bem como pretende determinar os seus elementos constitutivos e o avaliar das suas consequências.                     

 

[…]

 

Paul Valéry definiu poesia como “uma longa hesitação entre o som e o sentido”.

Achei perfeito.

Não vou, neste estudo, aprofundar a riqueza das implicações que suponho subjacentes à definição de Valéry, e que, de resto, me parecem evidentes.1

Basta sublinhar que ela veio colar-se por inteiro ao meu entendimento de Arquitectura, embora eu nunca tivesse conseguido encontrar uma frase capaz de expressar de uma maneira tão contida e completa, tão poética e delicada, a enorme complexidade do maleável universo em que a disciplina se inscreve, que ao mesmo tempo pudesse explicar as diversas frentes de  investigação e simultaneamente direccionar algumas pistas que se podem inserir na estrutura de um programa teórico.

Assim, substituindo “som” por “forma” e “sentido” por “função”, pareceu-me semelhantemente poder dizer que a “arquitectura é uma longa hesitação entre a forma e a função”                                

 

[…]

 

O que é sugestivo, embora possa complicar a abordagem teórica.

Mas serve para esclarecer que esta não pode ter a presunção de se estruturar nem como discurso filosófico nem como discurso científico.

Kenneth Frampton, prefaciando o livro de Peter Meiss já em 19862, assinalava como foram falhadas todas as sucessivas tentativas para encontrar um fundamento científico preciso para a teoria e prática arquitectónicas sem cair em contradições e tautologias.

Tinham de falhar.

Suponho que os territórios da filosofia ou da ciência nos são quase que necessariamente estranhos e que os arquitectos, que nesses domínios consigam manobrar com um mínimo de à-vontade, até estarão melhor situados para perceber as linhas de fronteira para além das quais não nos devemos aventurar.

Penso que o verdadeiro motivo da popularidade profissional daquelas aproximações estava na tentativa de resolver o complexo dos arquitectos em relação ao seu estatuto social.

Foi a tentativa de “sociologicizar”, de ”psicologicizar” e “antropologicizar” todo o discurso, foi a tentativa, talvez a mais séria, consistente, mas também quase de certeza a que implica maiores riscos no plano teórico-crítico, de aproximar a análise da arquitectura da análise linguística.

Com todo o carácter aventuroso que tem, esta aproximação, que foi frutuosa por abordar o discurso arquitectónico na sua fundamental unidade embora segundo várias perspectivas analíticas, foi talvez tomada por alguns sectores de maneira demasiado literal. 

Ainda que todos estes corpos de saber contribuam indiscutivelmente de uma maneira ou outra para os esforços de uma teorização da arquitectura, em nenhum se pode ir buscar apoio para manter credivelmente a pretensão a um mais convincente estatuto de ciência.

Mas nem dele precisa.

Validar um raciocínio no campo da teoria através de uma divagação no campo científico está desde logo destinado ao fracasso.  

O mesmo, de resto, se passa com o campo da Filosofia, esta quase sempre aproveitada “enquanto fachada intelectual para credibilizar escolhas formais”, como ironizou Neil Leach.3 Com certeza pelos Heideggers, os Sartres e Bachelards, os Derridas e Foucaults, todos os Deleuzes e por aí fora.

E claro que cada pensador é inteiramente livre de reflectir em Arquitectura do ponto de vista que entenda.

Mas isso, que é legítimo pensamento sobre Arquitectura, não se constitui por si em Teoria da Arquitectura.

 

[…]

 

Por isso, sem ser Filosofia nem Ciência, não se movendo, nem num universo de definidos “conceitos” como a primeira nem de urgências de “exactidão” como a segunda, defendo que a teoria resulta ser apenas pensamento arquitectónico expresso num discurso, arquitectónico ele também, articulando-se sobre “noções” de significado problemático e, sobretudo, reclamando na sua estruturação não só um máximo de coerência mas um máximo de “rigor”.

Entendida esta ideia de “noção” como exigência metodológica de maleabilidade.

Entendida esta ideia de “rigor” como exigência ética de seriedade e não manipulação.

 

[…]

 

Querendo aceitar por momentos a classificação que Kate Nesbitt propõe dos tipos de Teoria – a prescritiva, a proscritora, a assertiva, a crítica –, diria que a Teoria não se desenvolve nem prescritiva nem proscritora nem assertiva.

Não prescritiva porque não lhe compete fornecer receitas para bem fazer.

Não proscritora porque não lhe cabe “policiar” nem interditar qualquer caminho que quem quer que seja, nomeadamente os arquitectos, entendam seguir.

Não assertiva porque tendencialmente ensaística.

Das diferentes classificações que Nesbitt avança, só um termo me parece ter de facto que ver com a elaboração teórica: teoria “crítica”.4

Resulta daqui que, quando Roger Scruton afirma peremptoriamente que a Teoria de Arquitectura “consiste numa tentativa para formular regras, orientações e preceitos que governem ou desejam governar a prática de construir”5, não possa deixar de nos fazer sorrir, até pelo ar convencidamente definitivo, com que determina aquilo que a Teoria é e teria de ser.

Claro que, como em qualquer terreno público, a entrada é franca tal como as propostas, mas a sua eficácia na estruturação do pensamento arquitectónico tem de poder ser avaliada em cada momento e a sua discussão terá de estar sempre em aberto.

Creio que aquela afirmação de Roger Scruton não terá correspondido a um momento que lhe tivesse sido particularmente feliz.

Com grande margem de autonomia, a teoria define um território próprio, possui específicos métodos de trabalho, cria os seus próprios objectivos estratégicos, tem as suas normas particulares e as suas próprias exigências de rigor.

No entanto, seja como for, a teoria não corresponde – nem pode corresponder – a uma espécie de autismo técnico, e, ainda que preservando totalmente a sua autonomia, a formulação teórica tem de estar em permanente contacto, não só com outros níveis do conhecimento arquitectónico, mas ainda com outros domínios do saber.

E é natural também que, para além de haver diversos níveis e sectores de teoria a considerar, se possam tentar encontrar entre eles alguns traços comuns na sua formulação. 

E é um pouco nesta expectativa que tenho sempre vindo a trabalhar.

Analisando um pouco mais fundo, acrescentaria que a teoria tem conexões com vários outros domínios de saber, até porque os seus territórios de competência em parte se sobrepõem, mas em caso algum se criam laços de dependência seja em que sentido for.

Por mim, considero que a teoria que me interessa desenvolver, está comprometida com a formulação da própria linguagem arquitectónica, tentando detectar nela os seus elementos constituintes e perceber a sua mútua articulação.

 

[…]

 

Admito que, como afirma Hays, a relação entre teoria e prática se tenha tornado “a fundamental issue in architecture currently”.6

Mas permanecem-me algumas dúvidas, sobretudo que, no geral, essa discussão se tenha revestido de algum critério.

Resulta, assim, importante, no caso específico das relações da teoria com as práticas, perceber definitivamente que nem a teoria determina os trilhos das práticas concretas, nem as práticas concretas definem os limites e métodos da teoria.

As relações entre uma e outra entendem-se melhor num esquema de uma dialéctica interinfluência de duas actividades que caminharão em paralelo, embora mantendo esse contacto num registo de “fecunda independência”7, como refere Le Goff.

Com efeito, não considero ter sentido colocar – o que é frequente – a teoria liderando a prática ou vice-versa.

Daí que tenha até de concordar com Bernard Tschumi, quando afirma, com empertigada dignidade, que o projecto não é desenvolvido para ilustrar as teorias.8

É óbvio que não. 

Isso só pode passar pela cabeça de quem ainda julga que as teorias são tendencialmente normativas.

Mas importa deixar bem claro que, também por sua vez, e exactamente porque não é normativa, a teoria não se desenvolve para dar apoio a práticas específicas.

O que para muitos dos arquitectos chamados “práticos” já não parece tão óbvio assim.

Ou não tão conveniente. 

Claro que o tema daquelas relações entre teoria e prática não é simples.

E tentar entendê-lo no plano crítico e enquanto maleável relação dialéctica é tema que naturalmente precisa de maior e melhor análise.

Contribuir pouco que seja para esse estudo é, talvez, o objectivo principal do trabalho que desenvolvemos e que, logo à partida, decidiu ir aproveitar do material recolhido no “Inquérito do Sindicato”, sem que nisso se pretenda perpetuar seja que sociedade for.

Não está em causa fazer uma crítica substantiva ao “Inquérito…”, ainda que, num ou noutro ponto, se venham a sublinhar aspectos que podem ser ou mais surpreendentes ou mais esclarecedores, seja para o próprio “Inquérito”, seja para o nosso estudo.

Apenas a título de exemplo, cito o comentário, algo surpreendente –  conhecendo as afirmadas convicções primeiras do “Inquérito” –, de que algumas das características analisadas a nível local se podem considerar como significando uma específica maneira de habitar e de que, “de uma maneira geral”, essas mesmas características locais se podem considerar “típicas da Arquitectura Portuguesa”.9  

Então? 

Trata-se de um inesperado comentário que precisa de ser sublinhado e interpretado no quadro de uma tentativa crítica de interpretação global.

O que tentaremos. |

 

 

 

*O texto faz parte do suporte teórico do projecto de investigação dirigido por This text is part of the theoretical basis for the investigation project headed by Pedro Vieira de Almeida, até until 2011: A “Arquitectura Popular em Portugal. Uma Leitura Crítica” (FCT: PTDC/AUR-AQI/099063; COMPETE: FCOMP-01-0124-FEDER-008832) que será publicado em dois volumes da it is to be published in two volumes by Colecção Edições Caseiras do CEAA.

 

 

1 Já o fiz mais detalhadamente em vários momentos I have already done this on various occasions. Pedro Vieira de Almeida. A Poética de Le Corbusier – A Poesia de Valéry – Uma Pedagogia Impossível. in ENCONTRO LER LE CORBUSIER. Actas. Alexandra Trevisan, Josefina Gonzalez Cubero e Pedro Vieira de Almeida, eds. Porto : Escola Superior Artística do Porto, Centro de Estudos Arnaldo Araújo; Câmara Municipal do Porto, Pelouro da Cultura, (no prelo in the press).

 

2 Pierre von Meiss. De la Forme au Lieu. Lausanne : Presses polytechniques et universitaires romandes, 1986.

 

3 Neil Leach. A Anestética da Arquitectura. Lisboa : Antígona, 2005, p. 7. Neil Leach, The Anaesthetics of Architecture. Cambridge, Mass.: MIT Press, 1999, pág. 7.

 

4 Kate Nesbitt, ed. Theorizing a New Agenda for Architecture: An Anthology of Architectural Theory: 1965-1995. New York : Princeton Architectural Press, 1996, p. 16. Ed. orig. 1977.

 

5 Roger Scruton apud cited in Paul Allen Johnson, ed. The Theory of Architecture: Concepts Themes and Practices. New York : Van Nostrand Reinhold, 1994, p. 30.

 

6 Roger Scruton apud cited in op. cit., p. 8

 

7 Cf. Jacques Le Goff. Reflexões sobre a História. Lisboa : Edições 70, 1982, p. 48.

 

8 Bernard Tschumi. The pleasure of Architecture. in Kate Nesbitt, ed. Op. cit., p. 19.

 

9 Arquitectura Popular em Portugal. Lisboa : Centro Editor Livreiro da Ordem dos Arquitectos, 2004, p. 232. Ed. orig. 1961.


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